“NÃO NOS DEIXEIS CAIR EM
TENTAÇÃO”
“Jesus, cheio do Espírito Santo,
voltou do Jordão e, no deserto, Ele era guiado pelo Espírito” (lc 4,1)
Segundo a tradição, a primeira imagem da
tentação foi uma maçã: uma fruta
vermelha, carnosa, saborosa e brilhante.
Seu atrativo aroma penetrou até os tutanos de nossos ancestrais e eles caíram
na armadilha da superficialidade. Atrai-nos a superfície das coisas, justamente
aquela que brilha, ainda que de maneira fugaz e solucione nossa fome e nossa
sede. Cremos que com apenas uma mordida podemos saciar nossa ânsia de
sentir-nos diferentes, reconhecidos e valorizados. Tempos depois o superficial
continua sendo superficial e o reco-nhecimento, o prestigio, o aplauso ou o
acúmulo de bens revelam seu rosto inconsistente.
A tentação vai estar sempre ai, como maçã ou como pedras
que se convertem em pães, como aplauso buscado a partir dos
critérios do mundo, ou como joelhos que se dobram frente às promessas
de um ídolo com pés de barro. Sempre vai estar presente, buscando saciar nossa
fome e nossa sede, conhecendo onde pisamos, oferecendo-nos novidades no jardim
florido e consolo nas gretas de nossos desertos. Livra-nos Senhor desses “espelhismos”
que prometem vida e escondem o vazio!
Ser tentado é próprio do humano, mas o que é
divino pode ser encontrado em nosso interior. Quem não se deixa
conduzir pelo Espírito, não é capaz de acessar a própria interioridade, permanece
na superfície de si mesmo e se deixam enredar pelos estímulos externos. Muitos
já não conseguem mais recolher-se e voltar para “dentro” de si, para recuperar
o centro gravitacional de sua vida, o ponto de equilíbrio
interior.
Este é o desafio que nos inquieta: é preciso “conhecer-nos
a fundo”, ou seja, ter a experiência de si mesmo, do próprio íntimo, do
centro do ser, da região profunda da qual sem cessar tiramos, como de um poço,
a água viva, a energia, as certezas para viver. Vivemos um contexto social e cultural no qual se constata um modo de
vida que não favorece o contato profundo consigo mesmo. Seduzido por
estímulos ambientais, envolvido por apelos vindos de fora, cativado pela mídia,
pelas inovações rápidas, magnetizado por ofertas alucinantes... o ser humano se
esvazia, se dilui, perde a interioridade e... se desumaniza. Tudo se torna líquido:
o amor, as relações, os valores, a ética, as grandes causas... (cf.
Bauman).
O Evangelho de hoje insiste que Jesus se deixa
conduzir pela força do Espírito; por isso, vive uma inte-gração a partir de seu
coração e não se deixa levar pelas aparências enganosas. Tradicionalmente, as tentações
de Jesus foram interpretadas num sentido moralizante; costumava-se dizer que
Jesus nos queria dar o exemplo de como superar nossas tentações cotidianas. Tal
interpretação não capta em toda sua profundidade o sentido das “tentações de
Jesus”. Elas não são tanto uma prova a superar quanto um projeto que
deve ser discernido.
O que parece claro é que Jesus,
depois do batismo, buscou o deserto para um tempo de discernimento, em
oração, em solidão, diante do Pai que o proclamou seu Filho, sob o impulso do
Espírito; de algum modo teve de refletir e discernir sobre que tipo de messianismo
assumiria para sua missão em sua vida pública. É um tempo de confronto
interior, de crise. A “crise” põe à prova sua atitude frente ao Pai: como viver
sua missão e a partir de quê lugar? Buscando seu próprio interesse ou escutando
fielmente sua Palavra? Como deverá atuar? Dominando os outros ou pondo-se a seu
serviço? Buscando sua própria glória ou a vontade de Deus? Centrando sua vida
na busca de poder e riqueza ou assumindo uma vida pobre, como expressão de
solidariedade aos mais excluídos?
Jesus não quer um messianismo que reduza o ser humano
a um consumidor de pão; este precisa também do alimento da Palavra de Deus que ative sua dignidade de interlocutor de Deus, o
coloque de pé e o conduza a assumir ele mesmo o trabalho de fazer o pão e
reparti-lo entre todos. Em vez de seduzir o povo com prodígios e espetáculos, Jesus
prefere uma proximidade do tu a tu, nas mesmas praças e caminhos, na convivência
criativa e nos encontros humanizadores. Jesus não buscará o poder da dominação
política e da imposição pela força. Preferirá o caminho do serviço. O caminho
de Jesus é absolutamente novo. Nem
impressionar, nem seduzir, nem dominar a liberdade do ser humano. Só servir. Aqui também é preciso nos perguntar:
* Qual é a nossa provação? Qual é a nossa tentação? O que é que nos
seduz?
* O que é que nos tenta? O que é que nos desvia de nosso eixo, do nosso
caminho?
* O que é que nos desvia do ser essencial?
É preciso questionar certos acontecimentos, certas situações, certas
vivências, que podem nos induzir a um caminho que nos afasta de nós mesmos, que
nos afasta do melhor de nós. Desde sempre, a humanidade inteira e cada um de
nós, estamos expostos à tentação. Faz
parte de nossa condição humana. Trata-se de um conflito que dilacera a
existência por dentro. Por um lado, o ser humano sente o apelo e o impulso
para o alto, para a plena liberdade, para o compromisso e a fraternidade. Mas
por outro, ele também sente a caducidade, a fragilidade, a
fraqueza, toda sorte de limitações... que o deixam prostrado no chão.
Concretamente, em cada um de nós não existe apenas
o chamado para a fraternidade, para o entrega, para a comunhão.... mas também a
sedução e a tendência para o egocentrismo, o prestígio e os instintos de poder
e posse. Sentimo-nos simultaneamente santos e pecadores, oprimidos e libertados.
Nossa liberdade
sente-se movida e atraída em duas direções. A cena das “tentações de Jesus” desvela (distingue, põe às claras...) os dois
dinamismos, duas tendências, dois impulsos... que se fazem presentes em nosso
interior (um de alargamento ou expansão de si
mesmo em direção aos outros e de Deus; e outro de fechamento, auto-centramento, resistência
e medo).
A questão de fundo é saber qual dos dois
dinamismos alimentamos; é aqui que entra a liberdade (ordenada) para
deixar-nos conduzir pelo Espírito. O centro é o Espírito.
Trata-se de sermos dóceis para deixar-nos
conduzir pelos impulsos do Espírito, por onde muitas vezes não entendemos e não
sabemos. É Ele que ativa o que há de melhor em nós, expandindo nossa vida em
direção aos valores do Reino: desapego, serviço, esvaziamento do ego... Às
tentações do poder, do ter e do prestígio, o seguidor de Jesus responde com a partilha, o serviço, a comunhão, a solidariedade... O tempo quaresmal vem ativar esse dinamismo
expansivo.
Texto bíblico: Lc 4,1-13
Na oração: A oração sobre as “tentações de Jesus” nos ajuda a tomar consciência
das alianças e cumplicidades nas quais podemos cair em nossas relações com o mundo e com aqueles elementos que
de modo mais decisivo põe em perigo nossa liberdade: as riquezas, o
poder, o prestígio. É
uma espécie de "embriaguez existencial" na qual a alteridade
desaparece, a abertura a Deus se atrofia e a gratidão frente aos bens se
esvazia.
- Rezar minhas “afeições desordenadas”. Onde está o centro de minha vida?
Na aparência ou no interior?
Pe. Adroaldo
Diretor do Centro de Espiritualidade de Itaici - CEI
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