Caros amigos e companheiros, bom dia!
Envio em anexo a carta do Papa Francisco ao
presidente da Pontifícia Comissão para a América Latina
sobre o mal do clericalismo presente na América
Latina! Vale a pena ler e divulgar!
Abraços fraternos,
Pe. Raniéri de Araújo
Gonçalves, SJ.Av. Dr. Cristiano Guimarães, 2127 - Planalto
31720-300 Belo Horizonte MG
CARTA
DO PAPA FRANCISCO AO CARDEAL MARC OUELLET, PRESIDENTE DA PONTIFÍCIA COMISSÃO PARA A
AMÉRICA LATINA
À Sua
Eminência o Cardeal Marc Armand
Ouellet, P.S.S.
Presidente
da Pontifícia Comissão para a América Latina
Eminência, no final do encontro da Comissão para a América Latina
e o Caribe tive a ocasião de me encontrar com todos os participantes na
assembleia, durante a qual houve um intercâmbio de ideias e impressões sobre a
participação pública do laicato na vida dos nossos povos.
Gostaria de mencionar quanto foi partilhado naquele encontro e
prosseguir aqui a reflexão vivida naqueles dias, a fim de que o espírito de
discernimento e reflexão «não caia no vazio», para que nos ajude e continue a
impelir a servir melhor o Santo Povo fiel de Deus.
É precisamente desta imagem que gostaria de começar a nossa
reflexão sobre a atividade pública dos leigos no nosso contexto
latino-americano. Evocar o Santo Povo fiel de Deus é evocar o horizonte para o
qual somos convidados a olhar e sobre o qual refletir. É para o Santo Povo fiel
de Deus que como pastores somos continuamente convidados a olhar, proteger,
acompanhar, apoiar e servir. Um pai não se compreende a si mesmo sem os seus
filhos. Pode ser um ótimo trabalhador, profissional, marido, amigo, mas o que o
torna pai tem um rosto: são os seus filhos. O mesmo acontece a nós, somos
pastores. Um pastor não se compreende sem um rebanho, que está chamado a
servir. O pastor é pastor de um povo, e o povo deve ser servido a partir de
dentro. Muitas vezes vamos à frente abrindo caminho, outras voltamos para que
ninguém permaneça atrás, e não poucas vezes estamos no meio para ouvir bem o
palpitar do povo.
Olhar para o Santo Povo fiel de Deus e sentirmo-nos parte
integrante dele posiciona-nos na vida e, portanto, nos temas que tratamos, de
maneira diversa. Isto ajuda-nos a não cair em reflexões que podem, por si só,
ser muito úteis, mas que acabam por homologar a vida do nosso povo ou por
teorizar de tal modo que a especulação acaba por matar a ação. Olhar
continuamente para o Povo de Deus salva-nos de certos nominalismos declarativos
(slogan) que são frases bonitas, mas não conseguem apoiar a vida das nossas
comunidades. Por exemplo, recordo a famosa frase: «Chegou a hora dos leigos»
mas parece que o relógio parou.
Olhar para o Povo de Deus é recordar que todos fazemos o nosso
ingresso na Igreja como leigos. O primeiro sacramento, que sela para sempre a
nossa identidade, e do qual deveríamos ser sempre orgulhosos, é o batismo.
Através dele e com a unção do
Espírito Santo, (os fiéis) «são consagrados para serem edifício espiritual
e sacerdócio santo» (Lumen
gentium, 10). A nossa primeira e fundamental consagração funda as suas
raízes no nosso batismo. Ninguém foi batizado sacerdote nem bispo.
Batizaram-nos leigos e é o sinal indelével que jamais poderá ser cancelado.
Faz-nos bem recordar que a Igreja não é uma elite de sacerdotes, consagrados, bispos,
mas que todos formamos o Santo Povo fiel de Deus. Esquecermo-nos disto comporta
vários riscos e deformações na nossa experiência, quer pessoal quer
comunitária, do ministério que a Igreja nos confiou. Somos, como frisou o
concílio Vaticano II, o Povo de Deus, cuja identidade é «a dignidade e a
liberdade dos filhos de Deus, em cujos corações o Espírito Santo habita como
num templo» (Lumen
gentium, 9). O Santo Povo fiel de Deus foi ungido com a graça do Espírito
Santo e, portanto, no momento de refletir, pensar, avaliar, discernir, devemos
estar muito atentos a esta unção.
Ao mesmo tempo, devo acrescentar outro elemento que considero
fruto de um modo errado de viver a eclesiologia proposta pelo Vaticano II. Não
podemos refletir sobre o tema do laicato ignorando uma das maiores deformações
que a América Latina deve enfrentar — e para a qual peço que dirijais uma
atenção particular — o clericalismo. Esta atitude não só anula a personalidade
dos cristãos, mas tende também a diminuir e a subestimar a graça batismal que o
Espírito Santo pôs no coração do nosso povo. O clericalismo leva a uma
homologação do laicato; tratando-o como «mandatário» limita as diversas
iniciativas e esforços e, ousaria dizer, as audácias necessárias para poder
anunciar a Boa Nova do Evangelho em todos os âmbitos da atividade social e,
sobretudo, política. O clericalismo, longe de dar impulso aos diversos
contributos e propostas, apaga pouco a pouco o fogo profético do qual a inteira
Igreja está chamada a dar testemunho no coração dos seus povos. O clericalismo
esquece que a visibilidade e a sacramentalidade da Igreja pertencem a todo o
povo de Deus (cf. Lumen
gentium, 9-14) e não só a poucos eleitos e iluminados.
Há um fenômeno muito interessante que se produziu na nossa América
Latina e que desejo citar aqui: acredito que seja um dos poucos espaços em que
o Povo de Deus foi libertado de uma influência do clericalismo: refiro-me à
pastoral popular. Foi um dos poucos espaços em que o povo (incluindo os seus
pastores) e o Espírito Santo puderam encontrar-se sem o clericalismo que
procura controlar e moderar a unção de Deus sobre os seus. Sabemos que a
pastoral popular, como escreveu Paulo VI na exortação apostólica Evangelii
nuntiandi, «tem sem dúvida as suas limitações. Ela acha-se frequentemente
aberta à penetração de muitas deformações da religião», mas, prossegue, «se for
bem orientada, sobretudo mediante uma pedagogia da evangelização, ela é algo
rico de valores. Assim ela traduz em si uma certa sede de Deus, que somente os
pobres e os simples podem experimentar; ela torna as pessoas capazes para terem
rasgos de generosidade e predispõe-nas para o sacrifício até ao heroísmo,
quando se trata de manifestar a fé; ela comporta um apurado sentido dos
atributos profundos de Deus: a paternidade, a providência, a presença amorosa e
constante, etc. Ela, depois, suscita atitudes interiores que raramente se
observam alhures no mesmo grau: paciência, sentido da cruz na vida cotidiana,
desapego, aceitação dos outros, dedicação, devoção, etc. Em virtude destes
aspectos, nós chamamos-lhe de bom grado “piedade popular”, no sentido de
religião do povo, em vez de religiosidade... Bem orientada, esta religiosidade
popular, pode vir a ser cada vez mais, para as nossas massas populares, um
verdadeiro encontro com Deus em Jesus Cristo» (n. 48). O Papa Paulo VI usa uma
expressão que considero fundamental, a fé do nosso povo, as suas orientações,
buscas, desejos, anseios, quando as conseguimos escutar e orientar, acabam por
nos manifestar uma presença genuína do Espírito. Confiemos no nosso Povo, na
sua memória e no seu «olfato», confiemos que o Espírito Santo aja em e com ele,
e que este Espírito não é só «propriedade» da hierarquia eclesial.
Citei este exemplo da pastoral popular como chave hermenêutica que
nos pode ajudar a compreender melhor a ação que se gera quando o Santo Povo
fiel de Deus reza e age. Uma ação que não permanece vinculada à esfera íntima
da pessoa, mas que, ao contrário, se transforma em cultura; «uma cultura
popular evangelizada contém valores de fé e solidariedade que podem provocar o
desenvolvimento de uma sociedade mais justa e crente, e possui uma sabedoria
peculiar que devemos saber reconhecer com olhar agradecido» (Evangelii
gaudium, 68).
Por conseguinte, podemos perguntar-nos: o que significa o fato de
os leigos estejam trabalhando na vida pública?
Hoje muitas de nossas cidades tornaram-se verdadeiros lugares de
sobrevivência. Lugares nos quais parece que se instalou a cultura do
descartável, que deixa pouco espaço à esperança. Nelas encontramos os nossos
irmãos, imersos nestas lutas, com as suas famílias, que procuram não só
sobreviver, mas que, no meio de contradições e injustiças, buscam o Senhor e
desejam dar-lhe testemunho. O que significa para nós, pastores, o fato de que
os leigos trabalhem na vida pública? Significa procurar o modo para poder
encorajar, acompanhar e estimular todas as tentativas e esforços que atualmente
já se fazem para manter viva a esperança e a fé num mundo cheio de
contradições, especialmente para os mais pobres, especialmente com os mais
pobres. Significa, como pastores, comprometermo-nos no meio do nosso povo e,
com o nosso povo, apoiar a fé e a sua esperança. Abrindo portas, trabalhando
com ele, sonhando com ele, refletindo e, sobretudo, rezando com ele.
«Precisamos de reconhecer a cidade» — e, portanto, todos os espaços onde se
realiza a vida do nosso povo — «a partir de um olhar contemplativo, isto é, um
olhar de fé que descubra Deus que habita nas suas casas, nas suas ruas, nas
suas praças... Ele vive entre os citadinos promovendo a solidariedade, a
fraternidade, o desejo de bem, de verdade, de justiça. Esta presença não precisa
ser criada, mas descoberta, desvendada. Deus não Se esconde de quantos O buscam
com coração sincero» (Evangelii
gaudium, 71). Não é o pastor que deve dizer ao leigo o que fazer e dizer, ele
sabe tanto e melhor que nós. Não é o pastor que deve estabelecer o que os fiéis
devem dizer nos diversos âmbitos. Como pastores, unidos ao nosso povo, faz-nos
bem perguntarmo-nos como estamos a estimular e a promover a caridade e a
fraternidade, o desejo do bem, da verdade e da justiça. Como podemos fazer para
que a corrupção não se aninhe nos nossos corações.
Muitas vezes caímos na tentação de pensar que o leigo comprometido
é aquele que trabalha nas obras da Igreja e/ou nas realidades da paróquia ou da
diocese, e refletimos pouco sobre o modo como acompanhar um batizado na sua
vida pública e quotidiana; sobre como, na sua atividade diária, com as
responsabilidades que tem, se compromete como cristão na vida pública. Sem nos
darmos conta disso, geramos uma elite laical acreditando que só são leigos
comprometidos os que trabalham nas realidades «dos sacerdotes», e esquecemos,
descuidando-o, o crente que muitas vezes queima a sua esperança na luta
quotidiana para viver a fé. São estas as situações que o clericalismo não pode
ver, porque está mais preocupado em dominar espaços do que em gerar processos.
Portanto, devemos reconhecer que o leigo para a sua realidade, a sua
identidade, por estar imerso no coração da vida social, pública e política, por
ser partícipe de formas culturais que se geram constantemente, precisa de novas
formas de organização e de celebração da fé. Os ritmos atuais são muito
diversos (não digo melhores nem piores) dos que vivíamos há trinta anos! «Isto
requer imaginar espaços de oração e de comunhão com características inovadoras,
mais atraentes e significativas para as populações urbanas» (Evangelii
gaudium, 73). É ilógico e até impossível, pensar que como pastores deveríamos
ter um monopólio das soluções para os múltiplos desafios que a vida
contemporânea nos apresenta. Pelo contrário, devemos estar do lado do nosso
povo, acompanhando-o nas suas buscas e estimulando a imaginação capaz de
responder à problemática atual. Discernindo com o nosso povo e nunca para o
nosso povo nem sem o nosso povo. Como diria santo Inácio, «segundo as
necessidades de lugares, tempos e pessoas». Isto é, não uniformizando. Não se
podem dar diretrizes gerais para organizar o povo de Deus no âmbito da sua vida
pública. A inculturação é um processo que nós pastores somos chamados a
estimular, encorajando o povo a viver a própria fé onde está e com quem está. A
inculturação é aprender a descobrir como uma determinada porção do povo de
hoje, no aqui e agora da história, vive, celebra e anuncia a própria fé. Com
uma identidade particular e com base nos problemas que deve enfrentar, assim
como com todos os motivos que tem para se alegrar. A inculturação é um trabalho
artesanal e não uma fábrica para a produção em série de processos que se
dedicariam a «fabricar mundos ou espaços cristãos».
No nosso povo é-nos solicitado que conservemos duas memórias. A de
Jesus Cristo e a dos nossos antepassados. Recebemos a fé, ela foi um dom que
nos veio em muitos casos pelas mãos das nossas mães, das nossas avós. Elas
foram a memória viva de Jesus Cristo dentro das nossas casas. Foi no silêncio
da vida familiar que a maior parte de nós aprendeu a rezar, a amar, a viver a
fé. Foi na vida familiar que depois assumiu a forma de paróquia, de escola e de
comunidade, que a fé entrou na nossa vida e se fez carne. Foi esta fé simples
que nos acompanhou muitas vezes nas diversas vicissitudes do caminho. Perder a
memória significa erradicar-nos do lugar de onde viemos e, por conseguinte, não
saber nem para onde ir. Isto é fundamental, quando erradicamos um leigo da sua
fé, daquela das suas origens; quando o erradicamos do Santo Povo fiel de Deus,
erradicamo-lo da sua identidade batismal e assim privamo-lo da graça do
Espírito Santo. O mesmo acontece conosco quando nos erradicamos como pastores
do nosso povo, perdemo-nos. O nosso papel, a nossa alegria, a alegria do
pastor, consiste precisamente em ajudar e estimular, como fizeram muitos antes
de nós — mães, avós e sacerdotes — verdadeiros protagonistas da história. Não
por uma nossa concessão de boa vontade, mas por direito e estatuto próprio. Os
leigos são parte do Santo Povo fiel de Deus e, portanto, os protagonistas da
Igreja e do mundo; somos chamados a servi-los, não a servir-nos deles.
Na minha recente
viagem em terra mexicana, tive
a ocasião de estar a sós com a Mãe, deixando-me olhar por ela. Naquele espaço
de oração, pude apresentar-lhe também o meu coração de filho. Naquele momento
estivestes presentes também vós com as vossas comunidades. Naquele momento de
oração, pedi a Maria que não deixasse de apoiar, como fez com a primeira
comunidade, a fé do nosso povo. Que a Virgem Santa interceda por vós, vos
proteja e acompanhe sempre!
Vaticano,
19 de março de 2016
FRANCISCUS
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