DO “EU
ESTREITO” AO “EU EXPANSIVO”
“Se alguém me quer seguir, renuncie
a si mesmo, tome sua cruz cada dia, e siga-me” Lc 9,23)
Uma leitura superficial do evangelho de hoje
pode dar a impressão que o cristianismo é a religião que preconiza o
sofrimento, a renúncia, a negação de si mesmo, o esvaziamento da própria
identidade.
O sofrimento foi de tal modo exaltado que levou
muita gente a viver na passividade e resignação, esvaziando o sentido do seguimento
e bloqueando a esperança.
De fato, existem sofrimentos que são vazios,
sem sentido, “insensatos”..., pois fecham a pessoa em si mesma, na sua aflição
e angústia; não apontam para o futuro, para a vida. Como consequência, a Cruz ocupou o primeiro
lugar e tudo passou a girar em torno a ela.
Mas Jesus não buscou a dor nem
negou a vida. Pelo contrário, a missão primeira de Jesus foi a de aliviar toda
dor humana. Por isso, suas inumeráveis curas relatadas nos evangelhos. Suas
palavras não são uma exaltação do sofrimento, senão que expressam uma grande
sabedoria: elas buscam “despertar” a pessoa para que possa viver com mais
plenitude e perceber a melhor atitude frente à vida; elas condensam o
significado de uma vida vivida por Jesus na fidelidade ao Pai que quer
que todos vivam intensamente.
Todos nós carregamos recursos ainda adormecidos,
potencialidades quase divinas que, em alguns momentos privilegiados,
descobrimos em nosso interior. E, no entanto, ao reconhecer nossa fragilidade
humana, estremecemos diante de nossas ricas capacidades. Deixar-se determinar pelo “ego atrofiado”
implica cair num conformismo doentio e na mediocridade tranquila
e temerosa; ou seja, medo de ir além de si mesmo, para além de suas
capacidades. Quem tem medo afunda-se no mar escuro e revolto da
vida.
“Renunciar a si mesmo”
desvela o dinamismo ou força de morte no interior de cada pessoa, marcado pelo medo
de ir para além de si mesma; trata-se do medo de sua própria grandeza, o medo
da sua missão, medo da vastidão dos seus sonhos... Por não ter horizontes, ela
se limita ao seu modo habitual e fechado de viver; acomoda-se e não faz a travessia;
não faz as coisas com paixão e com criatividade.
Quando não se vive em
profundidade só resta a rotina, a superficialidade, o tarefismo sem sentido, o
desânimo, o “vazio vital”; renunciando à tensão do “mais” a pessoa
revela incapacidade de tomar a vida nas próprias mãos e dar-lhe uma direção
mais ousada e criativa.
É nesse contexto que surgem
inúmeros sofrimentos “insensatos” (sem sentido). “Negar a vida” (o grego original não diz
“bios”, nem “zoos”, mas “psyché” – “eu psicológico”) significa não reduzir-se
ao “eu superficial” ou “ego”. Trata-se de negar a “ilusão do eu”, para acessar
à Vida, que é nossa verdadeira identidade. Porque só quando deixamos de nos
identificar com o “ego”, tomamos consciência da Vida que somos. Essa é a Vida
de que fala o evangelho, a mesma Vida que Jesus viveu, com a qual Ele mesmo
estava identificado (“eu sou a Vida”) e a que buscava despertar nos outros.
Nós somos continuamente bombardeados com
slogans, imagens, mensagens... que nos obrigam a permanecer na superfície de
nós mesmos, ativando o nosso “ego” a ser o centro da nossa vida: “você vale”, “você pode”, “você merece”… “bem-vindo
à república independente de sua vida” “o mundo à sua medi-da”, “pensa em você”,
“seja você mesmo”, “viva a sua vida”, “sinta”, “experimente”, “aproveite”...
Quantas mensagens centradas o tempo todo no
restrito campo do nosso ego!
Se o mundo se converte em uma
competição de egos, então não sobra espaço para o diálogo, para o encontro,
para o amor. Se a pessoa só se constrói a partir da auto-complacência e do olhar
centrado em si mesma, termina fechando-se numa bolha que a isola. E essa bolha,
finalmente, se torna uma prisão na qual ela fica só. Vaidade, orgulho, soberba...
revelam a atitude daquele que se volta sobre si mesmo e se coloca tão no
centro, tão no pedestal, tão inflado e cheio de si, que se faz cego ou
indiferente aos outros. É estar encantado de si mesmo, mendigando aplausos, esquecendo-se
de seus pés de barro e de suas limitações. É acreditar ser o umbigo do mundo.
Mas o Evangelho de hoje nos convida, mais uma
vez, a alargar o círculo, a olhar para fora, a descentrar-nos para encontrar o
outro, a Deus, e, provavelmente, por esse caminho, também o olhar mais
autêntico e completo sobre a nossa própria vida. Ali Jesus fala em “renunciar
a si mesmo”. O modo mais simples de traduzir isso poderia ser: “deixa de viver para teu eu estreito”, “não gires
em torno ao teu ego, porque esse modo de vida te aprisionará cada vez mais, e
tua vida será vazia e estéril”. Dito positivamente: trata-se de um convite a ir
mais além do ego e descobrir nossa verdadeira identidade, aquela “identidade compartilhada”, na qual o próprio
Jesus se encontrava.
Por isso, estamos diante de uma boa notícia:
“Desperta!” “reconhece quem tu és!”.
“Descobrir-se a si
mesmo” é descobrir que no próprio interior há um
movimento infinito de construção de si mesmo, de identidade em movimento... que
se torna possível graças a um constante arrancar-se do imobilismo e do
auto-centramento existencial, que travam o fluxo da vida. Só transcende quem se aproxima da própria
interioridade, do próprio coração. A verdadeira identidade, ou “eu expansivo”, é dinâmica, histórica, fecunda, aberta
ao desconhecido, aventureira... Ela só se desvela para aquele que se desprende
das defesas e projeções do falso eu.
Como fazer para sair de um “estado de aprisionamento” e encontrar
um lugar de expansão e de manifestação da livre circulação do impulso vital,
que faz de cada um de nós um “sopro
divino vivo”? Ter identidade é viver a partir das raízes que nos sustentam. Em
contato com a fonte e na viagem para dentro, clareia-se a visão de nós mesmos,
da nossa originalidade e dignidade.
Há uma força de gravidade que nos
atrai progressivamente para o mais profundo de nós mesmos, onde Deus nos espera
e nos acolhe, e onde encontraremos o sentido de nossa existência e a verdadeira
paz.
O sentido de nossa existência consiste,
portanto, em “passar da morte à vida”: é a isso que as palavras de Jesus nos
convidam. O destino do eu atrofiado é
a morte: viver para o eu equivale a perder a vida. Pelo contrário, quem começa
a descobrir sua verdadeira identidade, já está morrendo ao seu ego, porque
descobriu que é “outra realidade”: a Vida
que não morre. E, a partir desta nova percepção, toda a visão da própria
existência se modifica.
“Aquele
que quer salvar seu ego, perde a vida; mas aquele que perde seu ego, salva a
vida”. E
Lucas acrescenta
o “por minha causa”, para destacar nossa
unidade em torno ao seguimento do Mestre.
Nesse sentido, “negar-se a si
mesmo” e “carregar a cruz “ equivalem a fazer nosso o caminho de Jesus. Ele se
negou a tomar o poder, nem usou a força e o prestígio como meios para servir e
salvar a humanidade. Jesus escolheu o único caminho que conduz ao coração do
ser humano: a solidariedade com todos os excluídos da terra. Este foi o caminho
d’Ele e este deve ser nosso caminho se qu
Textos bíblicos:
Lc
9,18-24
Na
oração: Diante
da presença de Deus, esteja aberto ao contato com a própria realidade
interior, para que venha à superfície aquilo que o sustenta e dignifica o seu
viver. Dirija
seu olhar para o mais íntimo de si, onde nascem sentimentos e valores,
decisões e gestos... onde você é convidado a se alegrar com os rastros da Graça.
- Cesse de buscar-se como “eu” e
deixe-se repousar no Silêncio, na Presença que anima tudo o que é.
Não faça do “eu” o centro de sua existência
nem de sua identidade. Neste esvaziamento do “ego” um “eu cristificado
e expansivo” vai renascendo e plenificando sua vida.
11º dom
JESUS, PURA TRANSPARÊNCIA DO
ROSTO MISERICORDIOSO DO PAI
“Jesus Cristo é o rosto
da misericórdia do Pai. O mistério da fé cristã parece encontrar nestas
palavras a sua síntese. Tal misericórdia tornou-se viva, visível e atingiu o
seu clímax em Jesus de Nazaré. Com a sua palavra, os seus gestos e toda a sua pessoa, Jesus de Nazaré revela a
misericórdia de Deus”. (Papa Francisco –
Misericordiae Vultus)
Tornar presente o Pai como Amor e Misericórdia foi, para Jesus, o cerne de sua missão: toda
a sua vida foi uma eloquente demonstração da misericórdia divina para com a humanidade.
Jesus,
presença visível da misericórdia, revela um Deus desprovido de dogmatismos, de
controle e de poder. O Deus de Jesus não é um juiz com um catálogo de leis que
tem necessidade de mandar, controlar, verificar... Basta-lhe a misericórdia, a compaixão...
Jesus propõe
um modo de ser humano inseparável da
misericórdia do Pai:
“Sede misericordiosos como o Pai é misericordioso” (Lc. 6,36)
Ser misericordioso “como” Deus constitui o mais elevado convite e a mensagem mais
profunda que o ser humano recebe sobre como tratar a si mesmo e aos outros.
“A
misericórdia de nosso Senhor se manifesta sobretudo quando Ele se inclina sobre
a miséria humana e demonstra sua compaixão, para quem necessita de compreensão,
cura e perdão. Tudo em Jesus fala de misericórdia; mais ainda, Ele mesmo é a
misericórdia”
(Papa Francisco).
Jesus, com sua presença desconcertante,
relativiza costumes, ritos e práticas religiosas, inclusive o Templo, e se
relaciona com gente excluída e de má reputação. Ele faz muitas coisas e em
muitos lugares (ensina, cura, denuncia, alimenta, dialoga, etc), mas a misericórdia é a que inspira e move
tudo em sua vida e ação. Sente a fundo o sofrimento das pessoas; antes de
preocupar-se com o pecado, preocupa-se em aliviar a dor da marginalização e
exclusão.
Este “princípio-misericórdia”
é o que há de iluminar e conduzir a vida dos seguidores de Jesus, e da Igreja
como comunidade misericordiosa. A misericórdia é, pois, um sentimento profundo e dinâmico, que não
permite que quem o sente permaneça imóvel ou passivo diante de tanto sofrimento
que há na humanidade. Ela é a alma da solidariedade, da ação social, do
compromisso com a justiça...
Por um lado, a misericórdia é
propriamente a atitude permanente que se revela em qualquer situação, sempre
que há fraternidade e amor, e por outra parte, a misericórdia é a compaixão
para com a pessoa que sofre. Uma atitude profunda, uma comoção do coração, que
conduz a atos de solidariedade...
A presença misericordiosa de Jesus aparece claramente no jantar em casa
do fariseu Simão.
O relato de Lucas põe
em confronto duas maneiras diferentes de reagir perante a “mulher pecadora”: uma,
de acolhida e proximidade; outra, de julgamento e distância. Uma mulher,
pecadora pública, aparece inesperadamente no jantar na casa do fariseu, sem ter
medo do que dirão a respeito dela. Há nela como uma espécie de ansiedade e
desejo de sair daquela situação; há nela uma necessidade de sentir-se pessoa,
de sentir-se mulher de verdade, de recuperar sua dignidade, de sentir-se livre.
Busca alguém que não a veja como
simples objeto de prazer; busca alguém que saiba reconhecê-la como pessoa, que
possa devolver-lhe sua dignidade. E não se importa com as reações de julgamento.
Prostra-se aos pés de Jesus, derrama o perfume que possivelmente era fruto do
seu pecado. Lava os pés de Jesus com suas lágrimas de angústia e confiança ao
mesmo tempo, antecipando o gesto que Jesus realizará na última Ceia. Seca-os
com seus cabelos como expressão de sua esperança.
Jesus revela-se um convidado perigoso, porque é
capaz de desvelar o que está encoberto. Sua presença cria problemas para o anfitrião, coloca em
risco o seu prestígio, a sua reputação. Jesus desmascara a
maneira medíocre de amar do fariseu, desprovido de compaixão e calculista no
julga-mento. O fariseu
perfeito tem comportamento frio, legalista, insensível, indiferente,
rígido. O perfeccionista
e o legalista
é um ser anestesiado e petrificado: nele a misericórdia permanece
atrofia-da; ele ficará confinado dentro de um eu inchado e vazio, que caminha sobre pernas de barro. Onde o
legalismo prevalece, ali a misericórdia não encontra espaço para reconstruir
relações quebradas. Por isso, Jesus
revela o abismo que existe entre a posição em que o fariseu se encontra e a da
mulher que, através de tantos gestos afetivos, expressa sua ternura e
humanidade.
“Entrei em sua casa e não me derramaste água nos
pés...
Não me deste um ósculo... Não me derramaste óleo
na cabeça”.
Aquele fariseu tinha muitas
coisas para dar a Jesus, mas não lhe deu nada de amor; aquela mulher não tinha
nenhuma coisa que dar-lhe, mas lhe deu o melhor: muito amor. O fariseu não
esperava nada de Jesus, aquela mulher esperava tudo d’Ele. Aquele fariseu e os
demais convivas a julgam como pecadora pública, mas Jesus a reabilita diante
deles; Ele a acolhe com respeito e ternura. Descobre em seus gestos um amor
limpo e uma fé agradecida. Diante de todos, fala com ela para defender sua
dignidade e revelar-lhe como Deus a ama. Jesus é capaz de reconstruir o
que os outros haviam destruído; é capaz de devolver a alegria a uma mulher que
os outros tinham tirado; é capaz de dar a vida àquela que os outros deram
morte.
Jesus não se fixa na vida passada da mulher;
por isso, não a julga, pelo contrário, valoriza todos os seus gestos de
acolhida e ternura. Não importam “seus muitos pecados”, mas o amor de seu
coração.
Jesus não é daqueles que se entretém
contabilizando pecados; Ele é daqueles que olha o coração do peca-dor; e quando
descobre amor, aí mesmo perdoa. Porque a melhor expressão de amar é perdoar; a
melhor expressão de sentir-se perdoado é sentir-se amado.
O perdão não é um problema de
justiça; o perdão é algo que nasce do amor; o perdão é fruto da compreensão, da
misericórdia. O comportamento de Jesus era
diametralmente oposto ao do fariseu e dos seus convivas: todas as mulheres que
se encontraram com Ele sempre saíram reabilitadas, até o ponto de chegarem a se
converter em protagonistas do fato mais importante de Sua vida, a ressurreição.
A linguagem de Jesus
para aquelas pessoas que praticavam uma religiosidade vazia, só ritual e
elitista, era muito dura e crítica. Como no caso deste fariseu religioso,
legalista refinado, são muitos aqueles que afirmam e honram a Deus com os
lábios, mas seu coração e seus atos estão muito longe d’Ele.
A maioria das religiões dá muita importância ao
cultual, às cerimônias, aos ritos. Gastam muito dinheiro em objetos, roupas,
ornamentos, imagens, ostentações, etc..., mas o compromisso com os grandes
valores do Evangelho, que são o essencial da mensagem de Jesus, fica ofuscado
ou esquecido. É urgente retornar à fonte do Evangelho, onde a misericórdia
é o atributo essencial e o modo de proceder de todo seguidor de Jesus.
Texto bíblico: Lc. 7,36-50
Na
oração: O olhar de misericórdia
deve ser continuamente ativado para poder perceber a nobreza
escondida no interior de cada um, sobretudo naqueles que estão mais excluídos. Para despertar este olhar
cristificado necessitamos de uma revolução do afeto e da ternura; só assim
poderemos olhar a nós mesmos e as pessoas com o olhar carregado de
misericórdia
-
O que prevalece em seu agir cotidiano: misericórdia? preconceito? suspeita?
julgamento?...
Pe. Adroaldo
Diretor do Centro de Espiritualidade de Itaici - CEI
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