UMA FÉ
QUE PROTESTA
“Mas o Filho do homem, quando vier,
será que ainda vai encontrar fé sobre a terra?” Lc 18,8)
Na parábola de hoje, dois personagens ocupam a
cena. Um juiz que “não teme a Deus” e “não respeita as pessoas”; é um homem surdo à voz
de Deus e indiferente aos sofrimentos dos oprimidos.
De outro lado, a parábola fala de uma viúva que tem fé e que protesta,
pedindo justiça, apesar da insensibilidade do juiz.
Que ressonâncias pode encontrar hoje em nós
este relato dramático que nos lembra tantas vítimas abandonadas injustamente à
própria sorte?
Na tradição bíblica, a viúva é,
junto com o órfão e o estrangeiro, o símbolo por excelência da pessoa indefesa
que vive desamparada, a mais pobre dos pobres. A “viúva” é uma mulher sozinha,
sem a proteção de um esposo e sem apoio social algum. Só tem adversários que
abusam dela.
A pobre viúva, no evangelho de
hoje, longe de resignar-se, clama por justiça; ela não tem outra coisa a não
ser sua voz para gritar e
reivindicar seus direitos. Toda sua vida se transforma num grito de protesto: “faze-me
justiça!”. Seu
pedido é o de todos os oprimidos injustamente. Um grito que vai ao encontro
daquilo que Jesus dizia aos seus seguidores: “Buscai o Reino de Deus e sua justiça”.
De fato, se observarmos bem o conteúdo do
relato e a conclusão do mesmo Jesus, vemos que a chave da parábola é a “sede
de justiça”. A expressão “fazer
justiça”
é repetida quatro vezes. A viúva do relato é exemplo admirável de uma mulher
corajosa que luta pela justiça em meio a uma sociedade corrupta que explora os
mais fracos.
Contrariamente àqueles que pensam
que não vale a pena sair às ruas e gritar (no plano social e religioso,
político e eclesial), o evangelho de hoje nos coloca diante do exemplo da fé e
do grito de protesto da viúva, capaz de alterar a ordem injusta do sistema
social. Muitas vezes resta só um grito, mas um grito que é mais profundo e
eficaz que todas as vozes opressoras, ocas, prepotentes... daqueles que corrompem
e exploram os mais pobres. O problema está em que a maioria se cala ou se dobra
diante da realidade injusta, pedindo míseras migalhas, subsídios, esmolas...
para que tudo continue igual. No fundo, querem que os enganem, e assim
compactuam com a submissão alienante.
O que acontece é que, muitas
vezes, aqueles que deveriam protestar, como a viúva, preferem ajustar-se ao sistema
“por um prato de lentilhas”: preferem fazer pacto com o juiz, com o opressor.
Essa tem sido a atitude de grande parte das comunidades cristãs, daqueles que
dizem que nada podem mudar. No fundo, é a atitude daqueles que não creem em
Deus.
Pois bem, contrariamente a isso,
esta viúva grita, em gesto de manifestação radical. Não se resigna, não se
curva. Com indignação, eleva-se diante do juiz, que representa todos os “podres
poderes” deste mundo. Ela, a viúva do grito, é mais forte que os próprios
juízes.
Certamente tem razão o teólogo J.
B. Metz quando denuncia que na vivência cristã há demasiados cânticos e poucos
gritos de indignação, demasiada complacência e pouca aspiração por um mundo
mais humano, demasiado consolo e pouca fome de justiça. É preciso somar gritos!
Esta parábola não trata de uma situação
particular, mas recolhe a experiência mais profunda da Bíblia, desde os hebreus
no Egito que gritam e Deus os escuta. Para que a realidade se transforme,
continua sendo necessário o grito das viúvas, a voz de todos os oprimidos do
mundo, que clamam diante de Deus e diante dos homens.
Esta é a fé fundamental, a fé da viúva que grita e pede justiça. Esta é a fé
na força do protesto. Esta é a fé que se eleva e se opõe ao sistema injusto.
A fé não é “algo” que alguns possuem e outros não; da mesma forma, a
fé não se reduz a uma aceitação doutrinal, prática de obrigações religiosas e
obediência e uma disciplina. A fé é uma vida que se desperta, cresce, se
expande..., vai se renovando a cada dia e tem implicações na construção de um
mundo mais justo.
A constância e a insistência de uma pobre viúva
põe em cheque a um autossuficiente juiz que se considera mais valente. A
constância é como a gota de água que pouco a pouco vai perfurando a pedra; a
constância é capaz de dobrar o mais duro coração.
A viúva “crê” (tem fé) na força
de sua insistência pedindo justiça. Numa dimensão mais profunda, o grito dos
marginalizados e das viúvas ressoa na mente daqueles que se beneficiam do
sistema social injusto. Trata-se não de resignar-se, de não aceitar simplesmente
o mundo como está, mas de protestar...
Esta viúva é o símbolo das vozes
de todos aqueles que gritam e protestam.
Se todas as viúvas do mundo
gritassem, se todos os pobres gritassem, se todos os que se sentem enganados
por esta sociedade elevassem a voz, o sistema social tremeria diante do grito
da vida. O resultado final não estaria no triunfo dos mais fortes e poderosos,
nem no poder do dinheiro, mas no grito incessante, de não-violência ativa. O
grito dos que clamam diante de Deus e diante dos homens tem uma força infinita;
trata-se da onipotência daqueles que gritam.
Vivemos em um mundo que parece dominado pela
voz daqueles que vivem para se impor, pela propaganda de um sistema que quer silenciar
todos os gritos e enganar-nos a todos com o circo midiático das mentiras
organizadas. Pois bem, contra tudo isso, temos que nos comprometer a elevar
nossa voz profética, como tantos homens e mulheres de nosso tempo.
Humanamente falando, essa voz parece muito
fraca. Como comparar-se com as potentes vozes do império da mídia ou com a
injustiça organizada dos “juízes” do mundo?
Externamente o grito da viúva parece muito
pouco; não é nada e, no entanto, essa voz foi e continua sendo mais poderosa
que todas as armas e dinheiro do sistema.
Esta é a pressão popular, esta é
a revolução de todas as viúvas do mundo, ou seja, de todos os injustiçados, uma
revolução que tem que começar, a partir do Evangelho.
Assim foi a voz de Jesus que
gritou contra as injustiças, a favor da justiça do Reino, mas foi assassinado.
É evidente que não conseguiram calar sua voz, pois esta continua ressonando e
perturbando a vida de muitos acomodados.
Assim deve ser nossa voz, nosso
grito, contra a ordem econômica injusta, contra uma sociedade que engana para
manter privilégios, e inclusive contra as religiões que nos obrigam a ficar em
silêncio.
Na
oração: É nossa
oração um grito a Deus, mobilizando-nos a lutar pela justiça em favor dos pobres deste mundo, ou será que a substituímos
por outra, onde o centro está ocupado pelos interesses do nosso “ego” ?
-
Por que nossa comunicação com Deus não nos torna sensíveis para escutar o clamor
daqueles que sofrem injustamente? Muitas vezes alimentamos nossas devoções
particulares, esquecendo os que vivem sofrendo.
-
Continuamos orando a Deus para pô-lo a serviço de nossos interesses, sem nos
importar muito com as injustiças que há no mundo. Muitas vezes, em nossas
comunidades cristãs, o centro de nossas preocupações não é o sofrimento dos
últimos, e sim a vida moral e religiosa dos cristãos.
-
Em nossas liturgias ressoa a voz daqueles que clamam por justiça ou elas são
ritos vazios de vida que nos mantém anestesiados e alienados frente aos dramas
da humanidade?
Pe. Adroaldo
Diretor do Centro de Espiritualidade de Itaici - CEI
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