O Deus Menino por Rubem Alves
Quem primeiro
percebe são os poetas. Isso se deve ao fato de que os seus olhos são
diferentes. Por isso eles vêem as coisas ao revés. Poesia são as coisas vistas
ao contrário. Não é coisa de pensamento, é coisa da visão. Quando as pessoas,
ao ouvir um poema, dizem que não entenderam e pedem explicações, é porque elas
puseram o poema no lugar errado, no lugar onde moram os pensamentos. Mas um
poema não é para ser pensado na cabeça. É para ser visto com os olhos.
Os poetas, por
terem olhos diferentes, vêem também diferente. Vêem o mundo ao contrário. A
verdade deles é o oposto à verdade dos adultos. Os adultos pensam assim: as
crianças nada sabem, quem sabe são os adultos; por isso as crianças aprendem e
os adultos ensinam; infância é ponto de partida; a condição adulta é o destino,
ponto de chegada.
Os adultos querem
andar para a frente. Progredir. Evoluir. Os poetas sabem que a alma não deseja
ir para frente. A alma é movida pela saudade. A saudade não deseja ir para a
frente. Ela deseja voltar.
Andar para frente
pode ser um equívoco. Aforismo de Eliot: “Numa terra de fugitivos
aquele que anda na direção contrária parece estar fugindo.“ Por vezes
andar para frente é ficar cada vez mais longe. Os adultos andam para frente. Os
poetas parecem andar para trás. Os adultos dizem que eles estão fugindo. Mas
não. Como os salmões, que deixam o mar e voltam às nascentes de águas cristalinas
onde nasceram, os poetas desejam voltar às suas origens. É lá que mora a
verdade que os adultos esqueceram. Fogem da loucura da vida adulta. Buscam
reencontrar a simplicidade da infância. Acho que é isso que Eliot queria dizer
quando ele escreveu: “E, ao final de nossa longa exploração, chegaremos
finalmente ao lugar de onde partimos e o conheceremos então pela primeira vez.“
“Meu Deus, me dá cinco anos, me dá a mão, me cura de ser
grande...“ A Adélia Prado está doente. Doente de
ser grande. Ser grande é estar doente. E doença precisa ser tratada. Se não for
tratada vira loucura. Para se curar adultice é preciso tomar chá de infância,
virar criança. Para isso bom é ler a poesia do Manoel de Barros. Manoel de
Barros é uma criança. Quem lê o que ele escreve vira criança. Ele brinca com as
palavras. “O que eu queria era fazer brinquedos com as palavras. Fazer coisas
desúteis. Eu queria avançar para o começo. Chegar ao acriançamento das
palavras.“
Em busca do lugar de onde se partiu... A poesia do Manoel
de Barros anda para trás, para longe da loucura do mundo adulto. Para isso ele
não mede palavras: “Preciso de atrapalhar as
significâncias. O despropósito é mais saudável que o solene. Para limpar as
palavras de alguma solenidade - uso bosta. Nasci para administrar o à-toa, o em
vão, o inútil. Prefiro as máquinas que servem para não funcionar: quando cheias
de areia, de formiga e musgo - elas podem um dia milagrar de flores. Também as
latrinas desprezadas que servem para ter grilos dentro - elas podem um dia
milagrar violetas. Senhor, eu tenho orgulho do imprestável.“ Um homem como esse é um perigo em
qualquer reunião de adultos sérios e responsáveis.
Bernardo Soares, uma das entidades-Fernando Pessoa, é
explícito: os adultos são burros, as crianças são inteligentes. “Sim,
julgo às vezes, considerando a diferença hedionda entre a inteligência das
crianças e a estupidez dos adultos, que somos acompanhados na infância por um
espírito da guarda, que nos empresta a própria inteligência astral, e que
depois, talvez com pena, mas por uma lei alta, nos abandona, como as mães
animais às crias crescidas, ao cevado que é o nosso destino.“ Discordo só num ponto: a inteligência
astral não nos abandona em decorrência de uma lei mais alta. Ela nos abandona
por ser incompatível com a adultice. A inteligência adulta é grave. Faz
afundar. A inteligência infantil é leve. Faz levitar.
Ricardo Reis - outra entidade-Fernando Pessoa - num
poema-sabedoria diz que o segredo é nos tornarmos discípulos das crianças.
“Mestre, são plácidas todas as horas que nós
perdemos
Se no perdê-las, qual numa jarra, nós pomos flores.
Não há tristezas nem alegrias na nossa vida. Assim saibamos,
Sábios incautos, não a viver mas decorrê-la, tranquilos, plácidos,
Tendo as crianças por nossas mestras e os olhos cheios de Natureza.“
Se no perdê-las, qual numa jarra, nós pomos flores.
Não há tristezas nem alegrias na nossa vida. Assim saibamos,
Sábios incautos, não a viver mas decorrê-la, tranquilos, plácidos,
Tendo as crianças por nossas mestras e os olhos cheios de Natureza.“
Quando os adultos ensinam nos tornamos cientistas:
aprendemos a ciência de dominar o mundo. Quando são as crianças que ensinam nós
nos tornamos sábios: aprendemos a arte de viver.
Alberto Caeiro conta como Jesus Menino, cansado do céu,
fugiu e veio viver com ele como uma criança igual a todas as outras.
“No céu era tudo falso, tudo em desacordo com flores e
árvores e pedras. No céu tinha de estar sempre sério... Fugiu para o sol e
desceu pelo primeiro raio que apanhou. Hoje vive na minha aldeia comigo. É uma
criança bonita de riso natural.
A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as coisas.
Aponta-me todas as coisas que há nas flores. Mostra-me como as pedras são engraçadas quando a gente as tem na mão e olha devagar para elas.
Ensinou-me a olhar para as coisas.
Aponta-me todas as coisas que há nas flores. Mostra-me como as pedras são engraçadas quando a gente as tem na mão e olha devagar para elas.
A Criança Nova que habita onde vivo dá-me uma mão a mim e
a outra a tudo que existe, e assim vamos os três pelo caminho que houver,
saltando e cantando e rindo e gozando o nosso segredo comum que é o de saber
por toda a parte que não há mistério no mundo e que tudo vale a pena.
A Criança Eterna acompanha-me sempre. A direção do meu
olhar é o seu dedo apontando. O meu ouvido atento alegremente a todas os sons
são as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas. (...)
Depois ele adormece e eu deito-o. Levo-o ao colo para
dentro de casa e deito-o, despindo-o lentamente, como seguindo um ritual muito
limpo e todo materno até ele estar nu.
Ele dorme dentro da minha alma e às vezes acorda de noite
e brinca com os meus sonhos. Vira uns de pernas para o ar. Põe uns em cima dos
outros e bate palmas sozinho sorrindo para o meu sono.
Quando eu morrer, filhinho, seja eu a criança, o mais
pequeno. Pega-me tu ao colo e leva-me para dentro da tua casa. Despe o meu ser
cansado e humano e deita-me na tua cama. E conta-me histórias, caso eu acorde,
para eu tornar a adormecer. E dá-me sonhos teus para eu brincar até que nasça
qualquer dia que tu sabes qual é.“
O Natal é um poema. Nele Deus se revela como criança. O
Deus adulto é terrível: grave, sério, não ri, não dorme, seus olhos estão
sempre abertos e nem mesmo têm pálpebras, jamais esquece, e registra tudo nos
seus livros de contabilidade que serão abertos no Dia do Juízo para o acerto
final de contas. O Deus adulto dá medo. Nele não há amor. Isso nada tem a ver
com uma criança: criança é esquecimento, riso, brinquedo, um eterno começo...
Não é por acaso que o Menino Jesus tenha fugido do Deus adulto.
Prefiro o Deus criança. No colo de um Deus criança eu
posso dormir tranquilo.
Rubem Alves
In: Transparências da eternidade
Verus, 2002
In: Transparências da eternidade
Verus, 2002

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