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FESTA DO CORPO Consagração Pe. Paulo Pedreira sj |
CORPUS
CHRISTI: festa do corpo
“E o pão que eu darei é a minha
carne dada para a vida do mundo” (Jo 6,51)
O corpo humano está no centro da
revelação cristã, já que se trata de algo assumido pelo mesmo Deus na Encarnação
de seu Filho Jesus Cristo; Ele se faz corpo humano e habita entre nós. Este
gesto divino eleva e engrandece a corporeidade humana e a resgata para
sempre, já que a divindade abraça a “carne”, assumindo sua fragilidade para
dentro de Si mesmo.
Deus se revela encarnando-se, assumindo um corpo que sente, que vibra, que tem
prazer e que sofre, uma carne que treme, vulnerável ao frio e ao calor, à fome
e à sede. Corpo que comunga com nossa mortalidade, padecendo dor, agonia e
morte, sendo sepultado no ventre da terra como toda criatura.
Segundo os Evangelhos, Jesus de Nazaré foi
Aquele que soube ser feliz transitando com sabedoria e amor o caminho do próprio
corpo. Ele não tinha uma mentalidade
dualista: sua visão do mundo não era dicotômica nem hierarquizada, nem separava
entre sagrado e profano. Essa mentalidade que contaminou o cristianismo não
procede d’Ele, mas de filosofias posteriores.
Jesus não se apresentou como
inimigo do corpo, do prazer e da festa, nem foi um asceta como João; pelo
contrário, escandalizou por sua forma festiva, prazerosa e livre de viver seu
corpo e suas relações. Desfrutou de banquetes em companhia de gente excluída e
marginalizada por diversas razões, e isso foi motivo de espanto. O fato de ter
sido acusado de “comilão, beberrão, amigo dos publicanos e pecadores” é a
melhor expressão de sua liberdade relacional e sua maneira de viver
reconciliado com seu corpo ao permitir-se prazeres corporais: comer, beber,
dormir, descansar, desfrutar dos sentidos... a vista, o sabor, o olfato, o
tato.
Nem ele nem seus discípulos
guardavam o jejum, participando de casamentos, banquetes, refeições festivas
com “gente de má fama”, para escândalo dos considerados “puros”.
Além disso, Jesus viveu seu corpo como um lugar para a relação sem
medos nem tabus: tocou e se deixou tocar com profunda liberdade, escandalizou
os seus discípulos desfrutando do contato amoroso com Maria de Betânia, que
derramou sobre Ele um caríssimo perfume, num gesto de total gratuidade e
marcada somente pelo desejo de compartilhar amor e gratidão.
Olhou o corpo das mulheres de um modo muito
diferente daquele dos seus contemporâneos; para Ele, elas nunca foram lugar de
tentação ou seres inferiores dos quais não tinha nada que aprender: foram
amigas, companheiras, discípulas, mestras em muitos momentos.
Empenhou-se por praticar um amor
operativo e, sobretudo, centrado nos corpos enfermos, desgarrados, desnudos,
famintos, encurvados, paralisados, cegos, coxos, leprosos...; além disso,
deixou claro a quem quisesse escutá-lo, que isso era o fundamental para entrar
no Reino: passar pela vida como terapeuta/sanador e não como juiz que acusa;
abraçar e acolher a carne sofredora dos outros e não manter uma prudente
distância do corpo vulnerado de Jesus.
E, se com sua vida não tivesse ficado suficientemente claro, quis, num momento solene, recordar a todos que a verdade última sobre o que é ganhar a vida ou perdê-la definitivamente está no fato como tratamos os corpos de nossos irmãos que sofrem. O amor não é algo etéreo: ou passa pelo corpo ou é apenas um bom desejo e nada mais.
Na festa
de “Corpus Christi” fazemos memória
deste mistério: o único recurso de que Jesus dispunha antes de ser preso e
sofrer a paixão era seu próprio corpo. Não teve outra riqueza nem outro dom a
nos oferecer. Esse Corpo que era sua
própria vida; sentia-se abençoado em sua totalidade, sem deixar nada fora.
Agradeceu por isso e fez dele um gesto definitivo: entregou-se por inteiro, sem
nada reservar para si. A partir de então, torna-se um Corpo expansivo que se
deixa tomar pelas nossas mãos e saborear pela nossa boca, na maior proximidade
e no mais íntimo contato.
De agora
em diante, será nos corpos vulnerados, nos corpos que sofrem, resistem e curam,
onde Ele quer permanecer expressamente presente, com uma presença imediata que
não deixa lugar a dúvidas:
“Todas
as vezes que fizestes isso a um destes mais pequenos, que são meus irmãos, foi
a mim que o fizestes”.
Na festa de Corpus Christi, há um
grande perigo de alimentar a devoção à presença real de Jesus na Eucaristia
desvinculado da realidade de sua
Encarnação, ou seja, esquecer que Ele se fez corpo, viveu intensamente seu ser
corporal e comprometeu-se com os corpos desfigurados e sofredores dos outros,
recriando-os e impulsionando-os a uma vida mais plena.
Portanto, “Corpus Christi” é festa do corpo de Jesus e de todos os corpos. Festa do pão e do vinho, frutos da terra e da comunhão de todos os seres. A Terra é um grande organismo vivente; o universo, com suas estrelas e galáxias é um imenso corpo. Da mesma forma, cada átomo é um corpo no qual se movimenta o universo do imensamente pequeno.
Sempre foi verdade a afirmação de que “somos
corpo”, e não a afirmação de que “temos corpo”; mas
durante muito tempo a espiritualidade cristã esqueceu esta verdade,
considerando o corpo como algo acidental ao ser humano, olhando-o com
suspeita e inclusive como seu inimigo. Identificada com uma mentalidade
dualista que desconecta corpo de espírito, material de espiritual, terra de céu...,
a espiritualidade cristã manteve a questão do corpo um tanto exilada e
silenciada.
Atualmente caímos no perigo
extremo: somos somente corpo, como se o corpo fosse o único centro de
atenção da vida. Na cultura pós-moderna, o corpo está se convertendo em
extensão da imagem de nosso ego, ao
invés de ser expressão de nossa história pessoal e de uma vida aberta à
plenitude de Deus.
Desconectado de sua intimidade, o
corpo vive como objeto dos olhares exteriores e por isso se coisifica e
se tecnifica como se fosse uma mercadoria.
Celebremos o Corpus Christi de outra forma; celebremos nosso corpo, tão
maravilhoso e vulnenável. Cuidemos do corpo, sem torturá-lo com nossas
obsessões, sem submetê-lo à escravidão de nossas modas e medos.
Respeitemos como sagrado o corpo do outro, sem apropriar-nos dele.
Sintamos como próprio o corpo do faminto, do excluído, do refugiado, da mulher violentada, maltratada, da criança abandonada...
É nosso corpo. É o Corpo de Jesus. É o Corpo de Deus. Celebremos, cuidemos, sejamos Corpo de Deus, epifania carnal da Ternura infinita.
Na
oração: Seu corpo, que é você mesmo, tão
efêmero mas habitado pelo Infinito, o Eterno. Você também, como Jesus,
em comunhão com todo o universo em movimento e evolução, é “corpo de Deus”. O Infinito
se manifesta e emerge de seu interior. Acolha seu mistério, deixe-se acolher
pelo Infinito em você, deixe que suba desde o mais profundo de você a Voz que
lhe diz: “Isto
é o meu corpo”.
Que a festa de “Corpus Christi” anime você a viver sua vida cotidiana
buscando fazer de seu corpo um lugar de encontro, de vida, de amor, sem medos
nem tabus. Você será mais feliz e, ao mesmo tempo, será agente de felicidade em
seu entorno.
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COMPAIXÃO |
A COMPAIXÃO COMO FONTE DO CHAMADO
“Vendo Jesus as multidões, compadeceu-se
delas...; chamou os doze discípulos” (Mt 9,36)
Uma pessoa que se define tem
força para despertar, para arrastar, para mobilizar os outros...
Jesus é o homem que se definiu. Por
isso, Ele nos inspira e nos impulsiona. Inspirar e impulsionar, impulsionar a
partir da inspiração: isso é seduzir no
melhor sentido da palavra.
Jesus não nos seduz simplesmente
para provar sua condição divina ou a veracidade de sua mensagem. Ele nos seduz
porque foi um homem de carne e osso como nós, e porque alcançou um grau de
humanidade, de compaixão e liberdade, de sensibilidade e compromisso..., que
está em nossas mãos alcançar.
A grande novidade e originalidade
de Jesus (sua subversão) começou em sua maneira de olhar a realidade e de deixar-se afetar por ela. A “subversão” da
vida começa pela subversão do olhar e vice-versa. O coração sente de acordo com
o que os olhos veem, mas os olhos veem de acordo com o que sente o coração. A
realidade subverte o olhar, e o olhar subverte a realidade. Olhos que não veem,
coração que não sente. Mas os olhos não veem quando o coração não sente.
Os olhos de
Jesus viram muita dor, miséria, violência..., e suas entranhas se comoveram.
Viu o seu povo despojado da terra, dos direitos mais elementares... Jesus viu e
se compadeceu; compadeceu-se e indignou-se; indignou-se e se comprometeu na
transformação daquela realidade dolente; comprometeu-se porque seus olhos viram
mais a fundo, mais além, outro mundo possível.
Na raiz
de sua atividade terapêutica e inspirando toda sua atuação junto aos enfermos
está sempre seu amor compassivo. Jesus se aproxima dos que sofrem, alivia sua
dor, toca os leprosos, liberta os possuídos por espíritos malignos, os resgata
da marginalização e os devolve à convivência.
O que move a vida de
Jesus é a compaixão e a compaixão é expansiva, tem impacto profundo naqueles(as)
que estão ao seu redor. Compaixão desperta compaixão pois ela é mobilizadora
dos sentimentos mais nobres presentes no interior de cada um. No calor da
compaixão ativada brota o chamado de Jesus e a resposta
dos seus(suas) seguidores(as). Sem compaixão, a resposta ao chamado se esvazia,
o serviço se burocratiza, o seguimento vira lei.
Jesus não nos chama para seguir uma religião, uma doutrina, nem faz proselitismo... Ele desencadeia um movimento e nos convoca a segui-lo, ou seja, identificar-nos com Ele e com sua proposta de vida.
O horizonte do chamado e do envio não é outro que o compromisso em favor da vida e das pessoas,
frente àquelas forças que tendem a travar e danificar a mesma vida. A partir
desta perspectiva, a “missão” pode reencontrar seu verdadeiro sentido.
Enviados(as) em favor da Vida, seus(suas) seguidores(as) sabem muito bem qual é
o encargo que Jesus lhes confia. Nunca O viram governando a ninguém; sempre O
conheceram curando feridas, aliviando o sofrimento, regenerando vidas,
destravando os medos, contagiando confiança em Deus.
A novidade de Jesus consiste justamente em afirmar que existe um caminho para encontrar a Deus que não passa pelo Templo, pela pompa dos ritos e pela observância estrita das leis. Desse modo, reconhece-se a vida como lugar privilegiado da Sua Presença.
O(a) seguidor(a) de Jesus não é aquele(a) que, por medo, se distancia do mundo, mas é aquele(a) que, movido por uma radical compaixão, desce ao coração da realidade em que se encontra, aí se encarna e aí revela os traços da velada presença d’Aquele que é a Misericórdia.
É aqui, neste mundo, que Deus nos chama a estender o seu Reinado, trabalhando cada dia como amigos(as) de Jesus que passam, se compadecem, curam, ajudam, transformam, multiplicam os esforços humanos. Apaixonados(as) por Deus, apaixonam-se pelo mundo que, em sua diversidade, riqueza, profundidade, fragilidade, sabedoria... lhes fala e lhe revela o rosto misericordioso do Deus que se humanizou para humanizar nossas vidas.
Jesus não fundou o clero nem quis instituir um corpo ou estamento de “homens sagrados”, uma espécie de funcionários do templo, constituindo-se numa “classe superior”. O que Jesus quis foi “discípulos/as” que lhe “seguissem”, ou seja, que vivessem como Ele viveu: dedicados a curar enfermidades, aliviar sofrimentos, acolher as pessoas mais perdidas e extraviadas. Assim nasceu o “movimento de Jesus”.
Jesus, o “rosto misericordioso do Pai”, continua passando diante de cada um de nós, parando e fazendo um chamado que desperta comoção e compaixão. Sua presença provocativa e seu chamado exigente colocam em questão nosso costume de nos refugiar no mundo asséptico das doutrinas, na tranquilidade de uma vida ordenada, satisfatória e entorpecida, na segurança de horários imutáveis e de muros de proteção, longe do rumor da vida que luta para ter um lugar ao sol, dos gritos daqueles que sofrem e morrem nas periferias deste mundo.
Escutar e seguir Seu chamado implica abandonar a estreiteza de nossos caminhos e deixar o nosso coração bater no ritmo dos doentes e marginalizados, vítimas da desumanização de nossa sociedade.
O importante não é pôr em marcha novas atividades e estratégias, senão desprender-nos de costumes, estruturas e dependências que estão nos impedindo ser livres para contagiar o essencial do Evangelho, com verdade e simplicidade.
Como evitar que a aventura, na qual um dia nos embarcamos, nascida de uma paixão pelo Senhor e pelo seu Reino, transforme-se num tedioso cumprimento de normas e costumes?
Estamos, talvez, experimentando a frustração de não ter acertado na rota da busca da vida plena e transbordante na qual quisemos investir as nossas melhores energias: sentimo-nos cansados(as) de palavras sem significado e sentimos fome de proximidade, de presença, de compromisso.
Como Igreja, nem sempre temos adotado o estilo itinerante que Jesus propõe. Nosso caminhar torna-se lento e pesado; não acertamos o passo para acompanhar a humanidade; não temos agilidade para deslocar-nos em direção à margem sofredora; agarramos ao poder e às estruturas que tiram a mobilidade; enredamos nos interesses que não coincidem com o Reinado de Deus.
Não estaremos desperdiçando as nossas forças para conservar atitudes arcaicas e nos deliciamos com um estilo de vida que nos atrofia? Não chegou, talvez, o momento de deixar de repetir aquilo que fazíamos antes, e de abrir-nos àquilo que está diante de nós, à novidade que o Espírito está criando?
Para Jesus, o ideal de sua mística é “viver com um pé levantado”, isto é, sempre pronto para responder às oportunidades que são oferecidas pela vida.
O(a) seguidor(a) de Jesus vive a aventura enquanto capacidade de estar “na frente” de situações desafiantes, superando o medo de romper paradigmas, potencializando talentos e fomentando a criatividade...
Tem a ousadia de inovar, a coragem de arriscar e a vontade de realizar mudanças importantes.
Para isso é preciso despojar-nos de hábitos arraigados, prejuízos, ideias fixas, modos fechados de viver e abandonar a atitude do “sempre fizemos assim”. Estes são os vícios que impedem uma resposta diferente e sedutora num mundo em transformação.
A compaixão deve configurar tudo o que constitui nossa vida: nossa maneira de olhar as pessoas e de ver o mundo; nossa maneira de nos relacionar e de estar na sociedade, nossa maneira de entender e de viver a fé cristã...
Texto
bíblico: Mt
9,36-10,8
Na
oração: Jesus,
foi o homem que se definiu, tinha claro qual era sua missão; por isso, nos
apresenta uma causa muito nobre e, com seu chamado,
rompe nosso estreito mundo e desperta em nós ricas possibilidades, reacende
o que de mais nobre há em cada um(a) e amplia nosso horizonte de vida.
Seguir Jesus Cristo é aderir a Ele incondicionalmente, é “entrar” no seu caminho, recriá-lo a cada momento e percorre-lo até o fim. Seguir é deixar-nos “configurar”, isto é, movimento pelo qual vamos sendo modelados(as) à imagem de Jesus Cristo.
Sua vivência do Seguimento de Jesus é marcada pelo “olhar compassivo e comprometido” ou por práticas piedosas alienadas, que não o(a) projetam em direção aos mais sofredores?
Pe. Adroaldo sj
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