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FOLHAS DO REINO | HOSPITALIDADE: acolher para humanizar-se | IDENTIDADE DESVELADA A SERVIÇO DA VIDA - Pedro e Paulo | 13º dom


         

HOSPITALIDADE: acolher para humanizar-se


“Quem vos recebe, é a mim que está recebendo; e quem me recebe, está recebendo Aquele que me enviou” (Mt 10,40)



Certamente todos já viram um invento recreativo para crianças, composto de um globo inflável que flutua sobre um reservatório de água; ali elas são introduzidas, e ficam se movendo prazerosamente.

Tal invento evoca um comportamento muito frequente nas pessoas atualmente. Sem se darem conta, elas mesmas fabricam uma bolha e se fecham nela como num reduzido microcosmo. Elaborado pela mente e inflado pelo ego, esse pequeno globo enclausura-as em um mundo muito definido e estreito: o êxito, a vaidade, o dinheiro, os bens materiais, um ambiente raquítico de espaço e tempo, torna-se sua única realidade. A presença do outro, sobretudo do “diferente”, é totalmente desprezada.

No entanto, para quem é seguidor(a) de Jesus, poderíamos perguntar se há algo mais além, por detrás dessa bolha, desse globo fechado no qual todos brincam como crianças inconscientes.

Despertar o “eu profundo e universal” é descobrir-nos como habitantes de um universo novo e espaçoso, um “eu sou” com sabor de infinito, com a consciência expandida que rompe a bolha e nos faz sentir a liberdade amorosa dos filhos e filhas de Deus.

Deus “se fez diferente” e é na “diferença” que Ele vem ao nosso encontro como chance de enriquecimento vital e de intercâmbio criativo. Deixemo-nos surpreender pelo Deus da vida que rompe esquemas, crenças, legalismos, bolhas...; ou nossa vivência de fé se reduzirá a um ritualismo fechado, impedindo sair de nós mesmos.

  “Aprendi que Deus, não tendo domicílio, só aceita a mística do ‘porta-em-porta’” (Frei Cláudio)

Também os muros estão voltando à moda. Não podemos esquecer que os muros foram criados para a segregação. O muro econômico e social se visibiliza no muro que segrega os excluídos e marginalizados. Um muro é uma ordem, um silêncio forçado e prolongado, é vontade de poder.

Muros são pedras no sapato dos poetas. Como tirá-los do caminho? Muros não têm semente, ainda que se multipliquem pelo mundo. O muro é um veneno. Muros são concretos: muros entre ricos e pobres, entre homens e mulheres, entre ignorantes e doutores, entre negros e brancos, entre centro e periferia...

Muros são urros. Muros são murros, são muito burros! Todos os muros deviam envergonhar, pois se os muros pudessem ensinar alguma coisa, desistiriam de serem muros.

Muitas vezes, os muros, as cercas e as portas nos protegem da diversidade, blindam nossa individualidade e parecem itens indispensáveis à sobrevivência. Assim, somos prisioneiros de nossa estreita visão de mundo e fazemos de nossa habitação uma couraça que enclausura.  Melhor a viagem que nos faz vulneráveis do que a segurança que nos rouba o caminho. Melhor enfrentar a vertigem do horizonte e usufruir da liberdade do que inventar cercas e muros reconfortantes que nos fazem cativos e solitários.

A vivência do seguimento de Jesus Cristo implica romper a bolha que asfixia a vida e derrubar os muros que cercam o coração, atrofiando a própria existência.

Hospitalidade é a palavra-chave na identificação com Aquele que se fez andarilho e buscou hospedagem. Hospitalidade é abrir um espaço para o outro.

Muitas vezes, ser hospitaleiro não é colocar alguém dormindo na nossa própria casa. É escutar alguém que é totalmente diferente de nós; é ter a capacidade de dar espaço à fala de alguém diferente.

Para abrir espaço para o outro é preciso nos desalojar do nosso próprio espaço; é preciso ser deslocado da nossa ideia de “estar sempre certo”, das nossas próprias convicções, dos nossos próprios sentimentos. Porque o peregrino tem o potencial de subverter, despertando ansiedades enterradas e aflições contidas.

Quem oferece a hospitalidade está rompendo com seu modo habitual de ser e viver. Abrir-se ao outro é sair de sua própria comodidade. O anfitrião, ao ser deslocado, encontra valores e atitudes dentro de si que o enriquecem. A melhor metáfora desta hospitalidade é a imagem da mãe que “faz espaço dentro de si para acolher o outro”, e assim multiplica a vida.

Tal hospitalidade se apresenta como um valor humano, espiritualmente vital e conectado com a vulnerabilidade de todo ser humano que sempre requer ser acolhido; e, para acolher o outro, é precisa criar espaços habitáveis e abandonar lugares inóspitos.

Se quisermos que a vida cristã tenha a marca da Ressurreição, é necessário compreender que ela é chamada a um compromisso diferente e mais profundo: sair da reclusão do nosso próprio mundo para entrar na grande “casa” de Deus; romper com o tradicional para acolher a surpresa; deixar a “margem conhecida” para vislumbrar o “outro lado”; desnudar-nos de ilusões egocêntricas; afastar a “pedra” da entrada do coração para poder viver com mais criatividade... 

As respostas do passado às questões atuais já não satisfazem; as velhas razões para fazer coisas novas, simplesmente já não movem os corações num mundo repleto de novos desafios.

Não há razão para permanecer nas bolhas e condomínios quando todas as circunstâncias mudaram.

A mudança de mente, de coração, de esperança, de paradigmas... exige que todos, de tempos em tempos, revisem suas vidas, conservando umas coisas, alterando outras, derrubando ideias fixas, convicções absolutas, modos fechados de viver...   que impedem a entrada do ar para arejar a própria vida.

Há, em todo ser humano, uma tendência a cercar-se de muros, a encastelar-se, a criar uma rede de proteção. Também os cristãos não estão imunes a esta tentação.

No entanto, nada mais contrário ao espírito cristão que a vida instalada e uma existência estabilizada de uma vez para sempre, tendo pontos de referência fixos, definitivos, tranquilizadores...

Numa vida assim faltaria por completo o princípio da criatividade, a capacidade de questionar-se, a audácia de arriscar, a coragem de fazer caminho aberto à aventura.




Texto bíblico:     Mt 10,37-42

Na oração:  O que é o específico do(a) cristão(ã)? Buscar, no seguimento, fazer e viver o que fez e viveu Jesus. Para isso adota as atitudes, o olhar e a capacidade de contemplação da realidade que o mesmo Jesus adotou. Ele abraçou diferenças e novos horizontes. O Seu ministério ultrapassou as fronteiras. Ele rompeu com os muros do preconceito social, racial, religioso, de gênero... 

- Como cristãos, a graça que recebemos é estar com Ele e com Ele caminhar, olhando o mundo com os Seus olhos, amando-o com o Seu coração e penetrando no seu íntimo com a Sua infinita compaixão. Nossa vocação é a de construir pontes e ser presença reconciliadora em situações de fronteira, optando por uma “globalização na solidariedade”.

- Sua vivência cristã: risco da aventura ou medo asfixiante? Contínua surpresa ou perene rotina?  Espaço de liberdade ou vivências dentro de bolhas asfixiantes e muros de proteção?





IDENTIDADE DESVELADA A SERVIÇO DA VIDA



“Eu te darei as chaves do Reino dos céus: tudo o que tu ligares na terra...” (Mt. 16,19)



Neste domingo celebramos a festa de duas grandes figuras-chave na Igreja: Pedro e Paulo; fortes personalidades que fizeram uma impactante experiência de encontro com o peregrino da Galileia. E foram profundamente transformados, a ponto de terem seus nomes mudados pelo próprio Jesus Cristo.


Diante das maravilhadas que serão proclamadas de um e de outro, podemos apresentar uma pergunta que pode nos parecer estranha. “Quê fica de Simão em Pedro?” , “Quê fica de Saulo em Paulo?”.


Porque Pedro, primeiro foi Simão; Paulo foi Saulo. E Jesus chamou Simão e chamou Saulo. Em seguida, mudou o nome deles para Pedro e Paulo.


Simão, o homem do lago e da barca de pesca; Saulo, o zeloso fariseu, fiel seguidor da lei e perseguidor da Igreja. Pedro, o homem da Igreja, a rocha sobre a qual Jesus assenta sua nova comunidade. E todos nós o recordamos como o homem das “chaves”.


Paulo, o apóstolo dos gentios, fundador de novas comunidades cristãs para além do território judaico.


Mas, retornemos às perguntas: o que permaneceu de Simão, aquele do lago, no Pedro da Igreja? Desapareceu o verdadeiro Simão e ficou somente o Pedro? Ou teríamos de dizer que há nele uma mescla de Simão e de Pedro? O que permaneceu de Saulo, fariseu e filho de fariseu, no Paulo que alargou as fronteiras da primitiva Igreja?


O Pedro, rocha firma, não deixa de ser o Simão do lago. Apesar de Jesus ter mudado seu nome, no entanto, em diferentes ocasiões aflora o Simão que não consegue entender Jesus e quer desviar o mestre de seus planos e projetos. Continua vivo o Simão que busca o triunfalismo messiânico de Jesus e revela resistência em seguir Aquele que vai ser crucificado. Continua sendo o Simão que compete com os outros sobre a primazia no novo Reino, e crê que é ele quem vai dar a vida por Jesus. Continua sendo o Simão covarde e com medo que nega Jesus na noite da Paixão.


O mesmo poderíamos dizer de Saulo. Muitos traços seus continuam presentes na nova identidade: Paulo.


No evangelho de hoje, Jesus deixa transparecer sua identidade através da confissão de Pedro: “Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo”; e, ao mesmo tempo, Jesus des-vela a identidade de Pedro: “Tu és “petros” (pedregulho) e sobre esta “petra”(rocha) edificarei minha igreja”. Pedro se torna rocha firme (“petra”) quando se apoia na identidade de Jesus (a verdadeira Rocha).


Pedro, que era “petros” (pedra de tropeço no caminho, frágil, limitado...), foi sendo transformado, através da identificação com Jesus, em “petra”, rocha firme da primitiva comunidade cristã.


Dessa forma, o Simão que era “petros”/pedra lentamente vai fazendo a travessia para “Petra”/rocha firme, porque o mestre desvelou a nobreza que estava escondida no coração dele, ou seja, sua verdadeira identidade sobre a qual o mesmo Jesus iria edificar sua igreja.


Diante dos dois personagens, Pedro e Paulo, vamos intuindo que a questão não é trocar simplesmente de nome. A Graça não destrói a natureza humana, mas a plenifica e a torna expansiva. Em Pedro, a graça não destrói o Simão, em Paulo não destrói o Saulo. Eles procurarão conservar a fidelidade a Jesus e à comunidade dos seus seguidores, mas cada um imprimirá sua própria personalidade.


A graça do seguimento de Jesus não apaga nossa condição humana, nossa herança genética, nossa personalidade, nossa psicologia, nossa sensibilidade e nosso mundo afetivo; carregamos conosco nossa cultura e nossa própria história humana.


O desafio é este: que permanece de nossa herança biológica e cultural na experiência do seguimento de Jesus? É possível que em todos nós, em “Pedro”, permaneça latente muito de “Simão”; em “Paulo”, permaneça muito de “Saulo”. E como distinguir o Simão de Pedro que todos carregamos dentro de nós? Não é fácil a Pedro desprender-se do Simão de antes, nem a Paulo desprender-se do Saulo de antes.


Só a identificação com Jesus possibilita fazer a travessia para o “novo nome”, integrando e pacificando as “marcas humanas” do antigo nome.


O Evangelho da festa de hoje nos ajuda a ler nossa vida. Ali afirma-se nossa identidade; e a identidade de uma pessoa é dada por aquilo que é sólido, consistente... no seu interior, que não se desfaz com as adversidades do mundo no qual vivemos (crises, fracassos, fragilidades, incoerências...).


Toda pessoa possui dentro de si uma profundidade que é seu mistério íntimo e pessoal.


 “Viver em profundidade” significa “entrar” no âmago da própria vida, “descer” até às fontes do próprio ser, até às raízes mais profundas.


A própria interioridade é a rocha consistente e firme, bem talhada e preciosa que cada pessoa tem, para encontrar segurança e caminhar na vida superando as dificuldades e os inevitáveis golpes da luta pela vida. Com confiança em si e na rocha do próprio ser, todas as forças vitais se acham disponíveis para ajudar a pessoa a crescer dia-a-dia, tornando-a aquilo que originalmente é chamada a ser.


 Para isso temos em nossas mãos as chaves da vida. O que fazemos com elas? Podemos abrir ou fechar, ligar ou desligar, atar ou desatar.... Ter a chave da vida como Pedro e Paulo ou como Simão e Saulo: abrir ou fechar as portas do futuro, das relações, dos sonhos, da missão... Dar amplitude à vida ou atrofiá-la. Atar ou desatar os nós da vida.... Aqui está o grande desafio: abrir-se ou fechar-se: abrir-se à vida, ao novo, ao outro, ao desafiante ou diferente... ou retrair-se ao próprio ego.


Ter identidade é assentar nossa vida sobre a rocha interior (Pedro) que nos sustenta e nos faz sair da prisão do ego (Simão). Nossa identidade é sempre dinâmica, histórica, fecunda, aventureira... Nossa vida é uma contínua travessia do Simão/Saulo para Pedro/Paulo, porque ela está centrada n’Aquele que tudo sustenta. Nossa identidade profunda está a serviço de quem? – do próprio “ego” como Simão ou Saulo, ou do Reino, como Pedro e Paulo.





Texto bíblico:  Mt. 16,13-19


 Na oração: Muitos caminhos conduzem à própria interioridade. A oração é a chave de acesso; ela é esse silencioso exercício de deixar que Deus me habite para que eu possa abrir as portas do coração e janelas da mente àqueles com quem me encontro.


Onde a Graça de Deus tem liberdade de atuar, ali afloram o Pedro e o Paulo que tenho atrofiados dentro de mim.


- O que prevalece nas minhas relações cotidianas: Simão/Saulo ou Pedro/Paulo?


Pe. Adroaldo sj

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